‘Mapas laranjas’ e recordes de temperatura: é o fim das férias de verão como as conhecemos?


Não dá para escapar à cor laranja. Os viajantes deste verão têm sido confrontados com mapas salpicados de tons que variam de um laranja brilhante a um terracota profundo, indicando recordes de temperatura no mundo inteiro. Quatro cúpulas de calor simultâneas, do sul dos Estados Unidos ao leste da Ásia, atingiram milhões de pessoas. Os residentes de Phoenix suportaram 31 dias de temperaturas acima de 37ºC. Mais de uma dúzia de cidades italianas estão em alerta para condições climáticas extremas. E, na Coreia do Sul, pelo menos 125 pessoas foram hospitalizadas em decorrência de condições relacionadas ao calor durante o Encontro Mundial dos Escoteiros.


Na Flórida, a situação se tornou tão crítica em junho que a assistente social clínica Jacki Barber, de 50 anos, cuja família reside no estado há oito gerações, cancelou uma viagem à praia de St. Augustine. “A temperatura da água estava em torno de 31ºC. Estamos acostumados com furacões, tempestades tropicais e até mesmo relâmpagos que atrapalham nossos planos, mas é a primeira vez que acho que está quente demais para ir à praia”, comentou Barber.



Não foi apenas o calor escaldante que atrapalhou os detalhados planos de férias deste verão, mas também incêndios, enchentes, tornados e até chuvas de granizo. Vermont, por exemplo, enfrentou inundações catastróficas depois de receber cerca de 20 centímetros de chuva. Dezenas de milhares de pessoas, incluindo milhares de turistas, foram forçados a evacuar ilhas na Grécia em decorrência de incêndios florestais. Na última quarta-feira, o primeiro-ministro Kyriakos Mitsotakis ofereceu uma semana de estada gratuita em 2024 para os viajantes afetados, dessa vez na primavera ou no outono. O popular festival de música Awakenings cancelou um evento na Holanda por causa da preocupação com granizo, raios e tempestades.


Esse clima cada vez mais perigoso atinge agora os destinos tradicionais para as férias de verão, com condições cada vez mais imprevisíveis, caras e mortais. De acordo com a Administração Nacional Oceânica e Atmosférica, os Estados Unidos enfrentaram quatro desastres climáticos desde maio, cada um causando mais de US$ 1 bilhão em danos. O Serviço Nacional de Parques estima que mais visitantes morreram de causas relacionadas ao calor desde junho do que em um ano normal. Além disso, as vítimas indiretas são ainda mais numerosas: um estudo recente revelou que as ondas de calor do verão passado mataram 61 mil pessoas na Europa.


As pessoas sempre apreciaram as viagens de verão. Embora as filas nos aeroportos se alonguem e os quartos de hotel se esgotem rapidamente, esse é o período de férias escolares, quando o sol brilha e as praias nos chamam. As viagens de verão são uma experiência democrática, acessíveis a todos, seja para visitar uma feira estadual, seja para relaxar na Sardenha. É o momento de se bronzear, comer mais e gastar dinheiro com menos restrições. Viajar oferece uma fuga da realidade ou, pelo menos, um breve intervalo dela.


Mas mesmo que o conceito de uma escapada de verão permaneça culturalmente relevante, será que ela ainda é prática? Os destinos de verão certamente estão menos óbvios; é impossível se esconder da realidade quando esta é a água do mar a 37ºC ou um incêndio devastador.


Durante décadas, a ciência confirmou que, se não forem mitigadas, as mudanças climáticas causarão mais sofrimento e dificuldades, além da perda de milhões de vidas nos próximos anos. Estamos tendo uma amostra dos resultados dessas alterações neste verão. Nossa relação com as viagens de veraneio chegou a um ponto crítico. O que acontecerá quando não pudermos mais simplesmente sair de férias?


A demanda é grande, e os destinos estão mudando


Apesar de todos os desafios, as chegadas globais, ou seja, o número total de turistas que cruzam fronteiras, deve aumentar em 30 por cento em comparação ao ano passado, de acordo com a Economist Intelligence Unit, uma divisão de pesquisa da empresa de mídia. A Organização Mundial do Turismo relata que as viagens à Europa estão agora em 90 por cento dos níveis pré-pandêmicos.


E o turismo é um grande negócio. Em 2019, o crescimento do setor superou o crescimento do Produto Interno Bruto global em mais de 40 por cento, de acordo com o Conselho Mundial de Viagens & Turismo. No mesmo ano, a indústria do turismo empregava 333 milhões de pessoas em todo o mundo, o equivalente a um em cada dez empregos, e era responsável por mais de dez por cento da economia global.


Por isso, mais uma vez, há filas intermináveis de visitantes em direção ao Louvre, contornando o Coliseu e subindo as escadas para a Acrópole, que neste verão já fechou várias vezes durante as horas mais quentes da tarde. Os visitantes nessas filas, e nas de outros destinos, não são facilmente dissuadidos pelo calor sufocante, pois já compraram passagens aéreas, reservaram quartos de hotel e planejaram meticulosamente seu limitado tempo livre. Leslie Cafferty, porta-voz da Booking.com, disse que a empresa “não está vendo nenhum sinal de que as pessoas estejam mudando ou repensando seus planos de viagem originais”.


Susanne Becken, professora de turismo sustentável da Universidade Griffith, na Austrália, argumentou que os problemas que enfrentamos também são agravados pelas práticas do setor de turismo global nos últimos 50 anos. Pense nos aeroportos, nas acomodações e em outros empreendimentos de grande porte construídos para atrair visitantes a locais historicamente ensolarados. “Tudo foi direcionado para esse desejo de buscar o sol. Por isso, construímos uma enorme infraestrutura em lugares como o Mediterrâneo, o México e assim por diante.” Como resultado, a Itália atualmente oferece quase 1,1 milhão de quartos de hotel, enquanto a Finlândia tem menos de 65 mil.


Décadas de viagens previsíveis deixaram marcas profundas em destinos populares, complicando a solução mais intuitiva para um clima em transformação: simplesmente ir para outro lugar. No entanto, a mudança está se aproximando, mesmo que os destinos mais frios não tenham espaço para isso. A Comissão Europeia prevê que o turismo no continente, que já é a maior atração turística do mundo, continuará a crescer, independentemente das condições impostas pelo aquecimento global. No entanto, as temperaturas mais elevadas mudarão o foco da demanda, atraindo mais turistas para o norte da Europa em vez de para o Mediterrâneo. Em um dos cenários projetados, as regiões do sul perderiam quase dez por cento de seus atuais turistas de verão.


Alguns viajantes já estão mudando seus itinerários. Miku Sekizawa e sua família planejavam voar de Chicago para Atenas, na Grécia, em agosto, mas o clima os fez reconsiderar. O parto de seu segundo bebê está previsto para novembro, e ela também tem um filho de dois anos. “Mudamos nosso itinerário na semana passada, pois nos demos conta do calor que faz por lá. Para mim, não é fácil lidar com o calor quando estou grávida”, afirmou Sekizawa, contadora de 36 anos. Como as reservas foram feitas com pontos e incluíam políticas de cancelamento gratuito, eles mudaram seus voos e, em vez disso, visitarão Paris, Estrasburgo e Amsterdã.


Mas os destinos de clima temperado estão enfrentando problemas climáticos próprios. Avery Baldwin, treinador de tênis de 27 anos que mora no Brooklyn, em Nova York, visitou regularmente uma pequena cidade em New Hampshire durante toda a vida. Mas a região foi assolada pela chuva neste verão. Um estudo da Universidade de Massachusetts Amherst constatou que, nos últimos dez anos, houve mais precipitações em New Hampshire a cada ano do que a média do século XX.


Essas condições úmidas acrescentam certo grau de risco às atividades habituais, como caminhadas, e levam as pessoas a permanecer em casa. “Sem dúvida, esse é um tópico frequente de conversas. Para isso, existem os quebra-cabeças”, disse Baldwin, acrescentando que planeja voltar neste verão.


Alguns governos estão implantando políticas para redirecionar o tráfego de turistas. A China se comprometeu a construir grandes resorts nas montanhas como parte de um programa que chama de “destinos de 22ºC”, que, segundo o governo do país, é a temperatura ideal para as férias. Esse programa visa atrair turistas locais de cidades como Xangai e Pequim durante os meses mais quentes. Becken, a professora de turismo sustentável, participou de uma conferência sobre mudanças climáticas em que o governo chinês revelou a iniciativa, e confirmou que resorts nas montanhas vêm sendo sistematicamente construídos.


Cancelamentos e aumento de custos


Hotéis, operadoras de turismo e prestadores de serviços também precisam lidar com condições cada vez mais voláteis, que ameaçam sua subsistência e frustram seus clientes.


“As pessoas geralmente vêm para cá para fazer alguma atividade”, compartilhou Pierce McCully, proprietário da Villa Trieste M na cidade italiana de Asolo. Situada no sopé das montanhas Dolomitas, a estada no local é popular entre os entusiastas de caminhadas e ciclismo. No entanto, neste verão, a região sofreu com uma série de incidentes climáticos extremos, desde chuvas persistentes até uma tempestade de granizo que ganhou as manchetes internacionais. Mais de 25 por cento das reservas foram canceladas, e os visitantes que chegam ficam mais dependentes das comodidades internas. “Gostaríamos realmente de não ter televisores nos quartos”, comentou McCully, mas, para os hóspedes, presos por causa do mau tempo, fica difícil passar todo o tempo explorando o frigobar.


Chris Kelly e Nina Rehfeld, casados e proprietários da Grand Canyon Journeys, empresa de turismo sediada em Sedona, no Arizona, contaram que estão mais cautelosos ao oferecer caminhadas no Parque Nacional do Grand Canyon e no Antelope Canyon, nas proximidades. “Este ano, estamos achando perigoso demais”, explicou Rehfeld. Duas mulheres na faixa dos 70 anos reservaram uma caminhada pelo Antelope Canyon durante um período de calor extremo, com temperaturas que passaram dos 43ºC à sombra. Em vez disso, Kelly optou por levá-las em um passeio de carro, percorrendo os pontos de referência com o ar-condicionado ligado.


Jason Danoff, que oferece caminhadas guiadas e passeios de bicicleta com a Trail Lovers Excursions, também em Sedona, enfrentou uma queda na receita em comparação ao ano anterior, consequência dos cancelamentos. “Estamos sendo prejudicados em ambos os lados, porque temos de pagar o guia, além de reembolsar os clientes.” Mas, quando o Serviço Florestal fecha inesperadamente uma propriedade, ou uma onda de calor põe em risco a segurança do cliente, não há muito que ele possa fazer. Ao mesmo tempo, os custos de seguro de Danoff subiram 60 por cento. Ele planeja aumentar o número de reservas para a baixa temporada, mas isso também tem seus riscos: “Você pode investir muito dinheiro para tentar atrair mais reservas em janeiro e fevereiro e, no fim, acabar com mais de 50 dias de chuva, perdendo todo o investimento.”


Quem está cuidando dos turistas?


Para combater o calor em Paris, a administração da Torre Eiffel instalou nebulizadores suspensos e estações de água para os visitantes que aguardam na fila, informou Patrick Branco Ruivo, diretor-geral da torre. Também transferiu uma porção maior de suas vendas de ingressos para um sistema de reservas on-line, reduzindo assim o tempo de espera dos visitantes.


Entretanto, a Torre Eiffel é apenas uma das partes interessadas. O setor de viagens é fragmentado por natureza, envolvendo uma cadeia de operadores, incluindo companhias aéreas, empresas de aluguel de carros, guias turísticos, provedores de seguros, hotéis e restaurantes, museus e atrações culturais. Todos esses atores atendem os turistas e lucram com eles, mas raramente operam em sintonia.


Em 2007, um relatório para investigar como as autoridades e operadoras de turismo locais estavam avaliando os riscos das mudanças climáticas foi encomendado pela Organização Mundial do Turismo, pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente e pela Organização Meteorológica Mundial. Dados desse relatório indicaram que havia “níveis relativamente baixos de preocupação, além de poucas provas de planejamento estratégico de longo prazo para lidar com futuras mudanças no clima”.


Historicamente, um ministério do turismo era predominantemente um órgão de publicidade, com pouca capacidade de pesquisa e investimento, de acordo com Becken. As autoridades de turismo são incentivadas a atrair mais visitantes, e, exceto em casos raros em alguns destinos ricos e excessivamente turísticos, como Amsterdã, a não rejeitar turistas por questões de segurança.


Algumas nações, principalmente as que mais dependem do turismo, têm planos para lidar com desastres, além de agências específicas para auxiliar viajantes. As Bahamas, por exemplo, estabeleceram um Comitê de Coordenação de Emergências Turísticas para garantir que o setor possa responder de forma eficaz no caso de um grande furacão.


Atualmente, muitos países dependem de governos locais e voluntários para lidar com situações climáticas extremas. O chefe da assessoria de imprensa do Departamento de Proteção Civil da Itália, Pierfrancesco Demilito, explicou que o país possui sistemas regionais autônomos, e cada prefeito tem responsabilidades relacionadas à proteção civil em sua área. Embora o departamento auxilie na alocação de recursos em âmbito nacional, são os prefeitos de cidades como Roma, Florença ou Veneza que determinam as medidas a ser tomadas em caso de alertas de clima extremo.


Mas a preparação para condições mais quentes vai requerer esforços mais coordenados nos níveis federal, estadual e municipal, e talvez mais agências especializadas.


Na ausência de apoio nacional ou unificado, o planejamento pode ficar a cargo de empresas com lastro financeiro suficiente para mobilizar recursos em grande escala. “A Disney é um exemplo de como lidar de maneira eficaz com um grande número de pessoas”, observou Daniel Scott, professor de geografia e gestão ambiental da Universidade de Waterloo, no Canadá. Ele sugeriu que o modelo de negócios do turismo globalizado pode começar a adotar abordagens semelhantes aos resorts integrados da Disney, onde uma única entidade é proprietária da infraestrutura e controla as experiências dos visitantes, proporcionando maior previsibilidade.


O futuro é incerto, mas estamos cada vez mais enfrentando a dissonância cognitiva nas viagens de verão em um mundo em aquecimento. As manchetes e estatísticas alarmantes estão levando a uma reflexão profunda sobre a natureza do turismo: quem se beneficia e quem participa desse setor. Cada vez mais gente se confrontará com decisões pessoais e cada vez mais difíceis e, assim como Barber, talvez escolha uma opção menos atraente, porém mais confortável: “Acabamos ficando em casa, amontoados em uma sala com o ar-condicionado ligado”, concluiu ela.


(Lauren Sloss e Niki Kitsantonis contribuíram para a reportagem.)


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